Capítulo 1: Viena na época de Beethoven e Schubert

Capítulo 1: Viena na época de Beethoven e Schubert

I. Histórias Paralelas, Mundos que convergem

II. Música pública e privada, diversas manifestações em Viena


I. Histórias Paralelas, Mundos que convergem

O titulo do presente capítulo apresenta já várias delimitações, tanto geográficas como temporais; a cidade de Viena foi o grande centro musical do período, e talvez mais do que qualquer outro no referido à música instrumental. Para os guitarristas virtuoses, os grandes pólos de ação foram, sobretudo, Viena e Paris, onde existiu uma verdadeira paixão pelo instrumento compartilhada pelas diversas classes sociais, o que lhes permitia oferecer concertos, publicar música e métodos e ter alunos dentro da alta burguesia e da nobreza. Há um fato que resulta notável: os guitarristas compositores que brilharam como virtuoses em Paris foram os espanhóis Sor e Aguado, e os italianos Carulli, Molino e Carcassi, enquanto que os compositores tratados neste livro, que provinham da região austro germânica e que desenvolveram suas carreiras em Viena, Molitor, von Call, Diabelli e Matiegka, apesar de conhecer bem e tocar o instrumento, não deixaram marca na história como concertistas, atividades estas das quais não se tem notícias (excetuando talvez alguma menção de von Call), pelo que é possível inferir que não eram virtuoses da guitarra. Do grupo de guitarristas compositores que atuaram em Viena só o italiano Mauro Giuliani apresentava-se intensamente como concertista, brilhando como grande virtuoso da guitarra. Pareceria que o legado musical dos guitarristas compositores deste período tivesse que depender do nome alcançado como intérpretes para justificar sua obra, porque enquanto os nomes do primeiro grupo mencionado acima nunca desapareceram da história, os do segundo não tiveram tal sorte, sendo esquecidos até tempos recentes, em que o resgate começou acontecer graças à pesquisa musicológica. Tal o caso de Matiegka e Molitor, cujos nomes não estiveram de moda em seu tempo e ainda permanecem em certa escuridão, sendo suas obras rara vez estudadas e interpretadas. Leonhard von Call brilhou nos salões aristocráticos de Viena por sua música de câmara com guitarra, agradável e fácil, e uma numerosa produção de quartetos vocais, gênero muito apreciado na cidade, de maneira que durante o século XX ainda se utilizaram obras dele com fins pedagógicos nas instituições de ensino de música. Se o nome de Anton Diabelli não ficou totalmente esquecido, deve-se principalmente a que desenvolveu uma importante atividade como editor (como se verá mais tarde), publicando, entre outras, obras de Beethoven e Schubert, e como compositor de música para piano com fins didáticos que ainda são conhecidas e utilizadas pelos pianistas, além das suas três sonatas para guitarra. Nos dias de hoje, rara vez se escuta alguma de suas missas, que representam o trabalho mais importante do autor no campo da composição, segundo ele mesmo reconhecera. Quanto à delimitação temporal, as três primeiras déca­das do século XIX coincidem com a vida de Beethoven e Schubert em Viena, e foi nos primeiros anos deste século que chegaram todos os guitarristas à cidade. Aqui resulta interessante chamar a atenção para o fato de que, segundo Raymond Erickson[1] existiram ‘duas Viena’, uma de Beetho­ven e outra de Schubert, porque estes músicos viveram em esferas sociais diferentes; enquanto Beethoven vivia no âmbito da corte imperial, rodeado de aristocratas que o financiavam, Schubert pertencia ao âmbito próprio da classe media, não podendo viver exclusivamente da composição. De acordo a esta ideia, poderia se inferir que existiram mundos musicais paralelos, o que fica curiosa­mente ilustrado pelo surpreendente fato tantas vezes men­cionado em livros de história e biografias, de que os dois maiores compositores residentes em Viena na época, Beethoven e Schubert, não tenham se encontrado mais do que uma única vez. Contudo, fazer dessa ideia uma ver­dade indiscutível sem buscar explicações mais profundas, pode ter contribuído também à fragmentação do estudo da história da música, que rapidamente adotou os cânones do repertório, descuidando um imenso e rico patrimônio cujo estudo permitiria alcançar maiores conhecimentos acerca desse período e seu funcionamento. É evidente que entre esses mundos, representados simbolicamente por Beetho­ven e Schubert existiu toda uma gama de possibilidades intermediárias,

constituída por uma plêiade de músicos que buscavam suas possibilidades de vida em Viena. O estudo dos compositores guitarristas que atuaram naquela cidade a começos do século XIX pode oferecer um elo en­tre as duas esferas mencionadas, porque se por um lado, seus nomes não chegaram a formar parte dos grandes sucessos da história da música, por outro, sabemos que estavam associados, de uma ou outra forma, aos de Beethoven e Schubert. É possível, portanto, encontrar pontos de convergência entre ambos os mundos e estudar seu funcionamento: enquanto que Matiegka estava relaci­onado ao círculo de Schubert, e Giuliani ao de Beethoven, Diabelli se relacionava com ambos…

Quando se fala do período chamado clássico da história da música, automaticamente se pensa em um espaço de tempo que se acostuma delimitar entre 1750 e 1830 aproximadamente. Determinações deste tipo são longamente questionadas porque resulta bem claro que as mudanças de estilo devem-se antes a uma imbricação de duas ou mais correntes estilísticas do que a uma abrupta mudança de direção, sendo, portanto, difuso o limite entre ambas. Por isso é mister explicar a escolha do período estudado neste livro, que abrange apenas as três primeiras décadas do século XIX e que por diversas razões serão consideradas como primordialmente imbuídas do espírito clássico embora possamos encontrar vários elementos mais próprios de um estilo diferente, apontando já ao romantismo, demonstrando assim a consideração anterior da imbricação de estilos que leva à transformação. […]


[1] Schubert´s Vienna. ERICKSON, 1997.

II. Música pública e privada, diversas manifestações em Viena

 

Durante todo o século XIX, os visitantes de Viena ficavam deslumbrados pelas numerosas oportunidades que tinham de escutar música e pelo virtuosismo dos intérpretes de qualquer nível, desde cantores da corte até harpistas itinerantes. Inclusive antes da época de Schubert, Viena se mostrava especialmente brilhante entre os centros musicais de Europa, principalmente no reino da música instrumental. Contudo, praticamente qualquer tipo de manifestação musical podia ser escutada na cidade, desde ópera italiana até canções com acompanhamento de guitarra, desde o mais profundamente abstrato e sério quarteto de cordas até artificiosas peças executadas por violinistas que colocavam o instrumento cabeça abaixo. Nas primeiras décadas do século XIX, quando Beethoven e Schubert viviam em Viena, os concertos públicos da forma em que os conhecemos hoje eram ainda uma novidade. Seu número era menor e o formato da programação, muito diferente. A maioria dos concertos públicos de então estavam associados a datas anuais especiais, como dias de festa e celebrações. Havia concertos que comemoravam eventos especiais como aniversários, o dia do onomástico da família real, o aniversário da morte de importantes figuras musicais como Mozart, e as festividades de abertura de teatros ou novos edifícios. A programação destes concertos durante a temporada regular, a qual começava no outono e continuava até o fim da primavera, era afetada pela observação oficial do calendário litúrgico da igreja católica, a regulamentação governamental e os limitados espaços para concertos da cidade.

Nesta época, ainda sem sistemas de seguros ou fundos de pensão adequados, o propósito da maioria dos concertos públicos foi o de arrecadar dinheiro. Concertos beneficentes anuais para a sociedade Tonkünstler (para viúvas e órfãos de músicos) ou para o Bürgerspital (casa para os pobres) foram eventos sociais de gala. Para os virtuosos viajantes e os intérpretes locais, os concertos públicos constituíram uma parte vital de seus ingressos regulares. Para alguns membros das orquestras dos teatros, a permissão para oferecer um concerto anual em benefício próprio estava estipulada em seus contratos. Contudo, não resultava fácil, porque em tais casos, o desafio do músico era atrair a quantidade suficiente de público para compensar os custos do concerto e obter um ganho, e devia para isto, enfrentar diversas dificuldades. Sem a figura moderna do agente de concertos, o próprio intérprete tinha que conseguir a sala, reunir e ensaiar a orquestra, fazer sua própria publicidade e cumprir ainda com as regulamentações da polícia e da censura. Também era necessário levar em consideração o lugar do concerto, o dia e horário, o valor dos ingressos e a oferta musical para conseguir um sucesso financeiro. Talvez seja esta a razão pela qual os concertos de meio-dia foram tão comuns, porquanto evitavam o gasto em velas e aquecimento. Todavia, concertos organizados em restaurantes (lugares comuns para performances nesta época) usualmente eram bastante mais baratos que edifícios da corte. Por outra parte, os teatros possuíam uma melhor acústica, e alguns ofereciam os serviços de suas próprias orquestras por uma porcentagem dos benefícios do concerto.

A primeira sala oficial de concertos de Viena foi construída em 1831 (foi o logro da sociedade musical Gesellschaft der Musikfreunde já mencionada anteriormente em uma citação e que será tratada mais adiante); até então, os melhores lugares para a realização de concertos públicos, foram os dois teatros da corte. O Burgtheater, lar do drama alemão, possuía boa acústica, ventilação muito pobre, e uma capacidade para cerca de mil pessoas. Nas cercanias encontrava-se o outro teatro, o Kärntnertortheater, especializado em ópera e balé; este tinha a melhor orquestra e aproximadamente a mesma capacidade, com o problema de ser notoriamente quente. Sem embargo, foi aqui que Beethoven estreou sua Nona Sinfonia e onde o famoso virtuoso do violino, Niccolò Paganini, apresentou a maioria de seus lucrativos concertos. Estes espaços foram difíceis de conseguir, não obstante, por causa da ocupada agenda dramática, dos caprichos das políticas dos teatros da corte e pelos seus altos custos. A próxima opção podia ser alugar uma sala grande ou pequena nas salas de baile da corte (Redoutensäle). Estas salas possuíam capacidade para acomodar mais de mil pessoas e foram sítios favoritos para os concertos benéficos, mas, as grandes salas tinham problemas acústicos por causa do eco, além de serem difíceis de aquecer e alumbrar. Podemos vincular algumas atividades dos compositores e guitarristas Mauro Giuliani e Simon Molitor a estas salas. Giuliani pareceria ter espe­cial predileção por aquele lugar, pois se apresentou regularmente na sala pequena da Redoutensäle; entre outras coisas, ali foi onde em 1808 estreou seu primeiro concerto para guitarra e orquestra, e onde em 1813 interpretou um duo com o pianista Moscheles, composto por ambos (ver figura 2). Simon Molitor escreveu Doze Minuetos e Doze Danças Alemãs para orquestra, que foram executados em 1804 na grande sala de baile da Redoutensäle. Em 1825, na mesma sala, foi organizado um grande baile de máscaras em benefício dos atores retirados onde estas obras foram interpretadas. Novamente deve ser mencionada a Gesellschaft der Musikfreunde, que conserva em seus arquivos 44 obras compostas por Molitor. […]