Capítulo 2: A sonata, gênero e forma no começo do século XIX

Capítulo 2: A sonata, gênero e forma no começo do século XIX

I. A sonata no âmbito privado e a sonata de concerto

II. A sonata para instrumento solista

III. A Sinfonia e a Abertura   

IV. Algumas considerações do passado e do presente sobre as formas de sonata


I. A sonata no âmbito privado e a sonata de concerto

A relação da sonata com as esferas musicais públicas e privadas é explicada por Charles Rosen quando escreve que “A época na qual as formas de sonata foram criadas, conheceu mudanças rápidas e revolucionárias no lugar que ocupava a música dentro da sociedade. O desenvolvimento das formas de sonata viu-se acompanhado pelo crescente estabelecimento dos concertos públicos.” Mas adiante, Rosen explica como esta forma criou um nexo entre os âmbitos público e privado:

Para o concerto público de música instrumental pura, sobretudo de música sinfônica, se necessitavam veículos próprios e adequados, e foram proporcionados pelas formas de sonata. […] As formas de sonata mostraram também um lado privado, sobretudo na música de câmara e na sonata para solista. Sentimo-nos tentados agora a sublinhar a diferença existente entre as formas musicais da esfera privada e da pública a finais do século XVIII; porém, são ainda mais notáveis as semelhanças existentes entre elas, por não falar da influência e intercâmbio que havia entre uma esfera e a outra. […] As formas privadas servem basicamente à mesma classe social que a sinfonia, embora a audiência tenha se convertido agora em intérprete[1].

A sonata resultou ser por um longo período, um meio ideal para que um compositor novo se desse a conhecer ao público. Um crítico que estava resenhando as três sonatas Opus 6 de Wölfl[2], escreveu em 1799: “Boas sonatas para piano são escritas hoje menos frequentemente que antes, quando a tendência de qualquer músico que quisesse reconhecimento público como compositor ativo era a de iniciar sua carreira com obras para piano, especialmente sonatas […].”[3]

[1] Formas de Sonata. Charles Rosen, 1994.

[2] Joseph Wölfl (1773-1812), pianista e compositor austríaco.

[3] Citado por Newman em The Sonata in the Classic Era.


II. A sonata para instrumento solista

À hora de escolher um instrumento solista para a composição de uma sonata no período clássico, o compositor não tinha muitas opções. É praticamente desnecessário dizer que o piano reinava neste terreno como amo absoluto; as outras possibilidades de instrumentos harmônicos recaíam no órgão, na harpa e na guitarra. O órgão estava circunscrito à igreja e, portanto, o tipo de repertório estava condicionado à mesma. Incluso, quando nos frontispícios de algumas sonatas para piano do século XVIII o compositor anuncia que a obra pode ser tocada tanto no cravo ou piano, quanto no órgão, isto responde, antes bem, ao desejo de alcançar o maior mercado possível para a venda das partituras, porquanto que o estilo de uma grande maioria delas se ajusta claramente às texturas mais próprias do cravo ou do piano que à do órgão.

Um pequeno número de compositores, tais como Ho­chbrucker e Krumpholtz em Paris, ou Webbe “the Younger” em Londres, deixaram sonatas para harpa. Em outras sonatas a harpa é designada como uma alternativa para o cravo ou o piano.

Mais numerosas são as sonatas para guitarra que, além das compostas em Viena –analisadas neste trabalho– conta com vários compositores, que publicaram suas obras na Itália, Alemanha e França[1], com uma quantidade considerável neste último país. De fato, as últimas sonatas para guitarra compostas no século XIX foram os opus 22 e 25 de Fernando Sor, a última das quais apareceu publicada em Paris em 1827; são obras extensas em quatro movimentos e com uma duração que média os 25 minutos. Haveria que esperar quase cem anos até a composição da próxima sonata para guitarra[2]. […]

[1] Estas sonatas serão comentadas no capítulo 4.

[2] Trata-se da Sonata Mexicana (c. 1923) composta por Manuel Ponce (1882-1948), e é de destacar que também resulta a primeira sonata para guitarra escrita por um compositor que não tocava o instrumento.



III. A Sinfonia e a Abertura   

Estes gêneros devem ser mencionados aqui porque também tiveram influência na configuração de algumas sonatas escritas para guitarra, tanto na concepção da obra como um todo quanto na composição de algum movimento em particular, especialmente o primeiro. Durante o período barroco, estes termos –sinfonia e abertura– se utilizavam praticamente como sinônimos, indicando a introdução de uma obra com vários números ou movimentos, como podia ser uma cantata ou uma suíte. Bach utiliza o termo Sinfonia como introdução para sua Partita para cravo n° 2 em dó menor, BWV 826, e o termo Abertura como introdução para a Partita n° 4 em Ré maior, BWV 828. Embora pouco mais tarde os compositores configurassem suas sinfonias e aberturas com os princípios das formas de sonata e as dividissem em gêneros e usos diferentes, estes termos podiam ser intercambiáveis. Encontraremos sinfonias como movimentos introdutórios para uma ópera ou balé, mas também cumpriram a função de iniciar um grande concerto, de forma que encontramos que as Sinfonias Londres de Haydn, na década de 1790 eram chamadas de aberturas em alguns programas[1]. Não é lugar aqui para fazer um exaustivo exame destes gêneros, mas baste recordar dois tipos básicos de abertura no período clássico: aquelas de procedência italiana, divididas em três movimentos sem pausas entre eles, segundo o esquema rápido-lento-rápido[2], como encontramos, por exemplo, na abertura da ópera Lucio Silla de Mozart, e aquelas em um movimento, com ou sem introdução lenta, que se fixariam mais tarde como modelo para a abertura de concerto. […]

[1] Isto é mencionado por Leonard Ratner em Classic music: Expression, Form and Style.

[2] Este esquema em três movimentos, dissociado da ópera podia ser utilizado como uma sinfonia. E para demonstrar aquele intercâmbio mencionado antes, também temos o caso contrário, uma sinfonia utilizada mais tarde como abertura. É o caso da sinfonia n° 32 K. 318 de Mozart, escrita em 1779 e que em 1785 utilizou como uma abertura para a performance vienense da ópera La villanella rapita de Francesco Bianchi.



IV. Algumas considerações do passado e do presente sobre as formas de sonata

SURGIMENTO DO TERMO SONATA

A palavra sonata é um dos termos mais utilizados na história da música e, por conseguinte, um dos mais amplamente discutidos. Isto se deve a que o termo foi aplicado durante o transcurso dos séculos para nomear uma grande quantidade de obras, de gêneros, estilos e formas diferentes. A primeira grande distinção que devemos fazer é no uso da palavra sonata para designar uma composição como um todo, ou seja, os diversos movimentos que conformam uma obra, ou para se referir a uma maneira de organizar um movimento, conhecida como forma sonata. Como veremos, existiu um alto grau de ambiguidade na utilização do termo em ambas as acepções até bem entrado o século XIX, ambiguidade que se deve aos usos e práticas dos próprios compositores.

Em primeira instância, a palavra sonata (do italiano sonare) surgiu para diferenciar-se do termo cantata (do italiano cantare) de maneira que estabelecia uma divisão entre música instrumental e música para cantar. Apesar disto, é possível encontrar algumas ambiguidades, como aquelas sonatas de G. Gabrieli, Monteverdi e Kindermann que utilizaram vozes; contudo, estas devem ser consideradas exceções dentro das principais tendências históricas. A primeira utilização da palavra sonata para significar não meramente uma performance instrumental senão uma peça escrita exclusivamente para instrumentos é encontrada em 1535, na tablatura para vihuela do livro El Maestro, do espanhol Luys Milan, que se refere a “villancicos y sonadas” no início da seção dedicada a canções para voz e vihuela e um pouco antes, utiliza o termo sonada ao se referir às pavanas italianas. A primeira aparição de ‘Sonata’ como título se deu em 1561, no primeiro livro da Intabolatura di liuto do alaudista italiano Giacomo Gorzanis. Esta “Sonata per Liuto” consiste em um “Pass’e mezo” binário em compasso de quatro tempos, seguido por sua livre elaboração como um “Padoano” em compasso de 6/8. Com este exemplo começa uma crescente literatura de sonatas italianas para alaúde. Contudo, estes primeiros usos do termo não representam outra coisa que um significado genérico de “peça para tocar”. A origem e crescimento da sonata barroca foi um fenômeno inseparável do surgimento de música instrumental independente do período barroco; gradualmente a sonata foi se identificando mais particularmente com a música de câmara. Sem embargo, apesar dos termos irem se definindo mais claramente, com um perfil diferenciado, algumas associações entre estes continuaram a criar ambiguidades, como por exemplo, o intercâmbio de termos entre ‘sinfonia’ e ‘sonata’, e ‘concerto’ e ‘sonata’ ao redor de 1700. Temos visto exemplos disto incluso no século XIX, com as obras de Gragnani e Matiegka comentadas na seção anterior. Esta possibilidade de amplos e diversos significados da palavra sonata deve ser tida em consideração também no período histórico tratado neste livro, onde encontraremos diversas concepções de forma e estrutura que levam indistintamente o título de sonata; podendo chegar tão longe como nas Variações em Fá menor para piano de Haydn de 1793, em cujo autógrafo adicionou o título de Sonata, Un piccolo Divertimento.

BINÁRIA OU TERNÁRIA?

Maiores discussões suscitaram as possibilidades da sonata enquanto princípio formal: a chamada forma sonata. Esta forma, sem origens claramente determinados, foi ganhando proeminência depois de 1750 se constituindo na base da maioria dos primeiros movimentos de quase todos os gêneros de música de câmara e sinfônica, assim como no desenho de muitos movimentos lentos e finales, e até nas árias de ópera. A principal discussão acerca da forma sonata gira em torno da sua divisão estrutural, se binária ou ternária. Segundo Leonard Ratner a maioria dos analistas da forma sonata tomou o conteúdo temático como parâmetro principal; isto foi explicado como sendo constituído por dois temas básicos que são expostos, desenvolvidos e recapitulados, do que resulta uma forma em três partes ou ternária. Por outra parte, os teóricos do período clássico explicaram a forma de um movimento como um plano harmônico, com duas grandes fases de ação, o movimento da tônica à dominante (ou à relativa maior no caso de tônica menor) e o movimento de retorno à tônica, o que resulta numa forma em duas partes ou binária. […]