Capítulo 3: As formas de sonata na música de câmara com guitarra

Capítulo 3: As formas de sonata na música de câmara com guitarra

I. Formações instrumentais

II. A música de câmara com guitarra em Viena

III. Outros interesses dos compositores guitarristas


I. Formações instrumentais

A guitarra de seis cordas surge como um instrumento novo nos últimos anos do século XVIII, quando o estilo clássico estava já consolidado[1]. A notável popularidade do instrumento nos grandes centros musicais da época, como Paris e Viena, propiciou a composição de uma ingente quantidade de música, por profissionais e diletantes, para uso doméstico e para concerto, nas classes altas e na classe média, abarcando diversos gêneros e estilos.

Um dos usos mais estendidos da guitarra desde a segunda metade do século XVIII foi o de instrumento acompanhante da voz, em adaptações, arranjos ou composições originais, e Paris foi o centro por excelência onde estes gêneros brilharam. A grande Enciclopédia de Diderot e D´Alembert já notava em 1757 que “alguns amadores contribuíram para a renascença da guitarra e ao mesmo tempo despertaram nosso gosto por vaudevilles, pastorais e brunettes [um tipo popular de canção de amor]” e o crescente número de canções com acompanhamento de guitarra que foram publicadas desde 1760 em diante comprova esta renovada popularidade do instrumento. Muitas destas canções eram transcrições das últimas árias de moda das produções da Opéra-Comique, enquanto outras foram compostas especificamente com a guitarra em mente. O mercado para ambos os tipos se expandiu firmemente ao longo da segunda metade do século XVIII, e a habilidade para interpretar uma canção fazendo o próprio acompanhamento veio a ser uma importante prenda social para homens e mulheres que desejavam exibir seu refinamento artístico, ou simplesmente como um meio de combater o tédio.

O paulatino estabelecimento da guitarra como um instrumento de moda incentivou a composição de todos os gêneros nos quais pudesse ser utilizada com proveito, e a música de câmara veio a ser o meio ideal para seu desenvolvimento. A novidade disto permitia um alto grau de experimentação e liberdade e os compositores podiam trabalhar com estruturas e formas utilizadas em gêneros consagrados, como o quarteto de cordas ou duos e trios com piano. A música de câmara para guitarra por volta do século XIX representou um novo e único gênero. Entre os diferentes ensembles que utilizaram este instrumento, o trio –guitarra com outros dois instrumentos diferentes– provou ser o mais viável e satisfatório, ao ponto que representa um dos gêneros mais populares e efetivos, que conta entre a metade e as duas terças partes de toda a música de câmara para guitarra composta entre 1780 e 1830[2]. Encontramos também uma grande quantidade de duos, e já em menor proporção, quartetos e quintetos. Ensambles maiores são uma raridade, como por exemplo, a única obra com guitarra de Juan Crisóstomo de Arriaga (Espanha, 1806-1826) uma peça para octeto intitulada Nada y Mucho, escrita em 1817 quando contava com apenas 11 anos de idade, para a rara combinação de dois violinos, viola, violoncelo, contrabaixo, trompa, guitarra y piano. Outra instrumentação inusual é exemplificada pelo Sexteto Opus 9 de Filippo Gragnani (Itália, 1767-1812) para flauta, clarinete, violino, violoncelo e duas guitarras.

Existem dois tipos fundamentais na música de câmara com guitarra[3] nas quais é possível encontrar a utilização de formas de sonata: as obras com as estruturas e formas mais livres do gênero serenata (também noturnos e divertimentos) e as obras associadas aos critérios mais estritos das formas de sonata, que levam por título simplesmente duo, trio, quarteto, etc. As serenatas podem ter uma estrutura de quatro, cinco ou mais movimentos, geralmente de caráter leve, com tendência a desenvolvimentos curtos e não temáticos, e em muitas ocasiões sequer sem movimentos com forma sonata, enquanto que um duo, trio ou quarteto, por exemplo, geralmente estará concebido em três ou quatro movimentos, onde o primeiro apresentará uma forma de sonata com um desenvolvimento mais importante. Mais uma vez é imprescindível recordar que os traços formais que distinguem os gêneros, funcionam apenas para uma diferenciação esquemática e que devem sempre ser tidas em conta as imbricações entre os tipos, que fazem com que encontremos as características de um, no outro, tornando assim mais difusa a possibilidade de uma definição precisa. Por conseguinte, não seria estranho encontrar as características de um elaborado primeiro tempo de sonata numa serenata e, ao contrário, termos, por exemplo, um trio, onde a concepção seja aquela da leveza típica do outro gênero.

[1] Este tópico será explicado no seguinte capítulo.

[2] Um interessante estudo sobre este tema é: The guitar chamber trio from 1780 to 1830: its style and structure. Robert LIEW, 1983.

[3] Referimo-nos à música de câmara ‘com’guitarra para indicar conjuntos instrumentais nos quais há outros instrumentos além da guitarra e não aqueles formados por várias delas; portanto, no caso de um trio, por exemplo, seria ‘trio com guitarra’, em lugar de ‘trio de guitarras’.


II. A música de câmara com guitarra em Viena

Todos os gêneros tratados anteriormente se cultivaram também em Viena, onde encontramos principalmente os nomes dos compositores que escreveram sonatas para guitarra solo. A quantidade de música é bastante grande e um rápido repasso dos catálogos de seus compositores permite comprovar que a proporção de serenatas, noturnos, variações e danças é muito maior que a de sonatas. Neste ponto é importante remarcar que não é meramente através do título de uma obra que pode se inferir isto, é mister analisar sua estrutura. Por exemplo, a usual combinação de flauta, viola e guitarra tanto pôde ser empregada para obras com o título de serenata quanto para aquelas com títulos que simplesmente rezam ‘trio’. A tendência é considerar as serenatas como obras leves e simples, e os trios, mais sérios em conteúdo; porém, encontramos numerosos casos de imbricação dos possíveis significados, onde um trio pode estar configurado de acordo com as estruturas mais livres da serenata, e estas, por sua vez, apresentarem estruturas típicas dos quartetos de corda, com os quatro movimentos clássicos, utilizando apenas o menuetto (ou scherzo) como movimento proveniente da dança. As marchas, por exemplo, que são movimentos típicos das serenatas, estenderam sua influência aos domínios da sonata, inclusive aquelas para guitarra solo, como nos opus 12 e 15 de Molitor, como se verá no capítulo dedicado a este autor. Contudo, um primeiro movimento com forma sonata dentro de uma serenata pode apresentar características diferentes a uma forma sonata de, por exemplo, um Trio Concertant; a seção de desenvolvimento no gênero serenata tende a ser de proporções muito menores, visando uma sucessão de rápidas modulações antes que de trabalho motívico.

As comprovadas ambiguidades terminológicas nos obrigam a examinar a maior quantidade de exemplos possíveis, porque os paradigmas estabelecidos partindo de um pequeno número de casos podem resultar numa visão errônea, e levar também à antecipação de conclusões através de informações que apenas deveriam representar a base para ulteriores pesquisas.

DUOS

Seguindo a tendência apreciável em outras regiões, a música para flauta e guitarra é mais numerosa que outras combinações de duos, e também com uma proporção maior de serenatas, noturnos, pequenos duos e variações que a encontrada nos duos de violino e guitarra, nos quais –em proporção– o gênero sonata predomina. Em Viena, o compositor mais prolífico de duos com flauta foi Leonhard von Call, e podemos exemplificar com ele as ambiguidades formais entre gêneros antes aludidas. A Sonata opus 103 para flauta e guitarra está estruturada em cinco movimentos, e nenhum deles é baseado na forma sonata, enquanto que a Serenata opus 129 para violino e guitarra, apresenta quatro movimentos; uma introdução lenta precede ao primeiro movimento, que é uma forma de sonata completamente desenvolvida. Isto se estende às obras de guitarra solo, pois encontramos que as três sonatas do opus 22 não funcionam como tais. […]

III. Outros interesses dos compositores guitarristas

Podemos dividir os compositores que escreveram música para ou com guitarra em três categorias: 1) aqueles que não tocavam o instrumento e a utilizaram numa pequena parte de sua produção ou em casos únicos; 2) aqueles que não faziam da guitarra sua ocupação principal, mas a conheciam e tocavam, deixando uma produção significativa de música com guitarra e obras sem ela; 3) os compositores guitarristas, que compuseram a maior parte da sua obra para a guitarra.

No primeiro grupo contamos com Boccherini, que só escreveu os quintetos com guitarra mencionados ante­riormente e uma Sinfonia Concertante para violoncelo, guitarra e orquestra por volta do ano 1800. A maior parte da produção de Boccherini está destinada à música de câmara, tendo composto 110 quintetos de cordas e dúzias de quartetos, trios e sonatas, além de concertos, sinfonias e música religiosa. Hummel escreveu para guitarra devido a seu contato com Giuliani quando esteve em Viena, mas ele foi um pianista virtuoso, reconhecido também como compositor em seu tempo, que compôs sonatas e concertos para piano, além de muita música de câmara e religiosa. Süssmayer, que morreu prematuramente aos 37 anos, escreveu principalmente música religiosa e óperas, mas não faltam sinfonias, concertos e música de câmara na sua produção, sendo um compositor de renome em Viena. Também é o caso de muitos compositores que se dedicavam principalmente a seus instrumentos, como os violoncelistas virtuoses Dotzauer e Romberg ou os flautistas Kummer e Fürstenau, que escreveram obras para seus instrumentos com acompanhamento de guitarra. Podemos mencionar ainda neste grupo a Carl Maria von Weber que escreveu alguns Lieder com acompanhamento de guitarra e o Divertimento opus 38 para guitarra e piano, e a Franz Schubert, cujo quarteto, única obra puramente instrumental de seu catálogo incluindo a guitarra, foi mencionado antes.

No segundo grupo contamos a Joseph Küffner (1776-1856) muito bem sucedido na sua época, autor de sinfo­nias, concertos, quartetos de cordas, música para sopros e para piano, que escreveu uma notável quantidade de música para e com guitarra. Joseph Kreutzer (1790-1840) foi violinista e compositor de música de câmara, incluindo gêneros como o quarteto de corda. Heinrich Aloys Praeger (1783-1854) foi um violinista e compositor holandês, com abundante produção de música de câmara: duos, trios, quartetos e quintetos para cordas e obras pedagógicas para violino, violoncelo e guitarra. O mais conhecido dos compositores deste grupo é Paganini, lembrado como um dos maiores virtuosos do violino, limitou-se à música instrumental, escrevendo caprichos, sonatas e concertos para seu instrumento. Teve um notável interesse pela guitarra, que o levou a dominá-la também ao grau de virtuoso e, portanto, dedicou uma grande parte da sua produção a ela.

Nenhum dos compositores dos dois grupos anteriores escreveu sonatas para guitarra solo, excetuando Paganini, embora sua obra tenha sido concebida com um simples acompanhamento de violino. O conhecimento profundo da guitarra parece ter sido uma condição indispensável para a composição de música onde sua parte pudesse ter certa importância, já que no caso do primeiro grupo, dos compositores que não tocavam o instrumento, não temos exemplos de obras para guitarra solo, e sua utilização na música de câmara é para uma função de acompanhante nos recheios das texturas. Já Küffner, e principalmente Paganini, que tocava superlativamente o instrumento, puderam escrever peças mais idiomáticas, tanto na música de câmara como nos solos. […]