Capítulo 6: Matiegka (1773-1830)

I. Matiegka olvidado, redescoberto através de Schubert
II. Grande Sonate N° 1, em Ré maior (1808)
III. Grande Sonate N° 2 em Lá maior
IV. Grande Sonate N° 3 em Mi maior
V. Sonate Facile, em Dó maior, opus 16
VI. Sonate Progressive, em Sol maior, opus 17
VII. Sonate em Si menor, opus 23
VIII. Six Sonates progressives, opus 31


I. Matiegka olvidado, redescoberto através de Schubert

O nome de Matiegka veio a ser conhecido no mundo da música através do quarteto para flauta, viola, violoncelo e guitarra D.96 que Schubert escreveu em fevereiro de 1814. Este quarteto consiste basicamente no agregado de uma parte de violoncelo e algumas modificações estruturais do Notturno opus 21 para flauta, viola e guitarra que Matiegka publicou em 1807. O quarteto foi descoberto em 1918 e publicado em 1926. Da própria mão de Schubert aparece uma indicação que prescreve trocar de lugar umas variações do Terzett impresso. Isto foi motivo de suspeita para o musicólogo Otto Deutsch, que efetivamente pensou que a obra não era original de Schubert, e que seria um arranjo de um trio de outro compositor. A descoberta em 1931, da primeira edição publicada do Notturno Opus 21 de Matiegka, pelo guitarrista dinamarquês Thorwald Rischel, veio demonstrar a certeza dessa presunção de Deutsch. E por paradoxal que pareça, a descoberta de Matiegka como o autor da obra, negava a paternidade schubertiana dela e houve um reproche tácito ao primeiro por ter privado ao repertório guitarristico de contar entre seus compositores uma figura da importância de Schubert. Porém, em tempos recentes, o interesse pelo conhecimento e resgate da obra de Matiegka tem restaurado sua posição como um dos importantes contribuidores ao desenvolvimento da guitarra em Viena.

A primeira referência que dele aparece, encontra-se justamente no longo prefácio da Sonata opus 7 de Simon Molitor, no qual menciona a Matiegka e a Diabelli como exemplos do desenvolvimento da correta escrita guitarrística em Viena. Em 1812, Molitor os menciona novamente, na introdução de seu método, indicando-os como os primeiros a ter adotado a nova escrita para a guitarra, tendo-a desenvolvido e difundido com suas obras e exemplos[1]. Existe ainda outra referência acerca de Matiegka antes da sua morte, acontecida em 1830; trata-se de uma biografia escrita por Wilhelhm Klingenbrunner em 1826, cujos dados são bastante confiáveis porque havendo sido eles amigos, provavelmente o próprio Matiegka poderia ter ministrado as informações. Desta forma, sabemos que havia aprendido canto, violino, piano e violoncelo e que chegou a Viena em 1800[2]. Não encontrando emprego como musicista em um primeiro momento, entra a trabalhar em um estudo legal. Entretanto, se dedica a aperfeiçoar-se no piano, e, segundo Klingenbrunner, já em 1802 era considerado um dos melhores mestres de Viena do instrumento. Não obstante, não temos outras fontes que confirmem esta informação, que resulta altamente contrastante com o fato de não aparecer seu nome citado nos jornais ou nas críticas e avisos musicais da época, e não existirem pelo menos algumas obras publicadas para piano. O real é que suas composições para guitarra foram publicadas a partir de 1806, por importantes casas editorias de Viena. Em 1817 cessa sua produção guitarrística, porque entra ao serviço da igreja de St. Leopoldo, como mestre de coro, e em 1820, com o mesmo cargo, na igreja de St. Joseph na Leopoldstadt; com estes cargos, sua atividade como compositor se centra na música sacra. Por problemas de saúde, se afasta de seu cargo em 1826, e nada se sabe dele até sua morte quatro anos mais tarde, em uma precária condição pecuniária, tendo deixado uma viúva e seis filhos, quatro deles menores. Seu interesse pela guitarra resultou em várias composições, destacando aquelas de música de câmara. Como vimos, o Notturno opus 21, foi acreditado como digno de Schubert na sua versão para quarteto (que mencionamos no capítulo 3) porém, menosprezado como trio no original de Matiegka -pese a ser uma obra perfeitamente escrita- com muita probabilidade pela razão acima citada.

[1] Refere-se a uma escrita idiomática para o instrumento, aproveitando suas capacidades polifônicas e escrevendo a diferenciação entre as vozes claramente.

[2] Matiegka nasceu na região de Boemia em 1773 e estudou jurisprudência na universidade de Praga.


II. Grande Sonate n° 1, em Ré maior (1808)

Esta sonata é a terceira publicação de Matiegka no gênero, depois da Sonate Facile Opus 16 e a Sonate Progressive Opus 17, ambas de 1807. A Grande Sonate n° 1 foi publicada no ano seguinte sem número de opus, mas representa um significativo avanço sobre as precedentes; se aquelas se caracterizam pelo seu conteúdo didático, esta –como também a Grande Sonate n° 2– é uma peça de concerto, muito mais extensa e de maior complexidade técnica. Isto se infere já através do próprio título da obra, Grande Sonate, que, junto com o de Grosse Sonate no opus 7 de Molitor e o de Sonate brilliant no opus 15 de Giuliani, anunciam uma peça para uso profissional, não para os aficionados.
No frontispício da edição publicada por Artaria et Compagnie (figura 93) encontramos vários detalhes interessantes:

– Debaixo do nome do compositor, aparece o epíteto Professeur, do qual inferimos que a atividade de didata era sua ocupação principal na época.
– O desenho da guitarra contém numerosas informações, como o nome das cordas (no pentagrama próximo ao cavalete do instrumento), os números de trastes e pequenos pentagramas correspondentes a cada traste, onde se indicam as notas que ali são produzidas.
– Um pentagrama que percorre a guitarra desde sua base até a cabeça contém a escala cromática que pode ser executada no instrumento (com o nome das notas e a digitação correspondente).
– Um pequeno livro desenhado no canto inferior direito da portada contém o incipit de quatro sonatas, que será visto mais adiante.

Figura 93. Frontispício da primeira edição da Grande Sonate n° 1 de Matiegka.

VII. Sonate em Si menor, opus 23

Esta obra é uma das mais intrigantes de Matiegka. Trata-se de uma adaptação para guitarra de uma composição de Haydn, precisamente a sonata para piano em Si menor Hob. XVI-32[1]. Esta adaptação é digna de estudo por vários motivos: contém numerosas variantes respeito do original, com engenhosas soluções instrumentais devido à transferência de meios; a tonalidade de Si menor, de retórica austera, raramente utilizada na primeira metade do século XIX, resulta um belo exemplo aplicado à guitarra. Matiegka situa como primeiro movimento de sua sonata o que em Haydn aparece como terceiro e que também está estruturado na forma de sonata; mantém o menuetto na tonalidade de Si maior, pelo que constitui o único movimento de toda a literatura de sonatas para guitarra da era clássica com uma tonalidade com mais de quatro alterações na clave. O interessante é que o terceiro movimento do Opus 23 não procede de Haydn, e provavelmente seja do próprio Matiegka ensaiando o estilo do Sturm und Drang representado por esta obra; a sonata de Haydn apareceu em 1776, em uma época que se correspondia com esse movimento estilístico, e Matiegka publicou seu opus 23 em 1811, dois anos após a morte de Haydn, e em uma época na qual o Sturm und Drang resultava completamente anacrônico.

O modelo de sonata em três movimentos com um menuetto central é frequentemente utilizado por Haydn, e se tornou a opção favorita de Matiegka, que a empregou em 8 das 12 sonatas[2] para guitarra solo.

A estrutura do opus 23 é a seguinte:

I- Presto fugato (Si m, 2/4)
II- Menuetto (Si M, 3/4)
III- Rondó: allegro non tanto (Si m, 6/8)

Resulta interessante a inversão de movimentos que realizou Matiegka, tomando o final de Haydn como primeiro tempo do opus 23, mantendo o menuetto em segundo lugar e compondo um terceiro movimento adequado para o final da obra, mantendo a unidade estilística.

[1] Isto foi observado pelo guitarrista, professor e pesquisador Mário Carreira no artigo: Matiegka’s sonata op.23 for guitar and Haydn’s pianoforte sonata in B minor, Hoboken XVI:32, publicado em Tecla Editions em 2003, e ampliado em 2010 para uma publicação em português na Revista Gui­tarra Clássica (n° 4, Janeiro de 2010).

[2] Já vimos que a Grande Sonate n° 3 possuí apenas um movimento, e em duas das seis sonatas do opus 31 Matiegka substitui o menuetto pelo scherzo.