Capítulo 7: Diabelli (1781-1854)

I. Sonata n° 1, em Dó maior
II. Sonata n° 2, em Lá maior
III. Sonata n° 3, em Fá maior


Anton Diabelli é hoje o nome mais conhecido entre os que conformam o grupo de compositores para guitarra estudado neste livro. Em grande parte isto se deve a sua intensa atividade como editor de música, que, como pudemos comprovar em capítulos anteriores, levou-o a relacionar-se com Beethoven, Schubert e Giuliani, entre muitos outros. Esta situação o coloca como um verdadeiro elo entre as ‘duas Viena’ já várias vezes mencionada: comentamos em várias oportunidades as variações que Diabelli encomendou a cinquenta compositores residentes em Viena, o que estimulou a Beethoven a escrever uma de suas maiores obras para piano: Variações sobre um tema de Diabelli, opus 120; Franz Schubert, por sua vez, teve sua primeira publicação através da firma de Diabelli, tratando-se de seu lied Erlköning (composto em 1815, mas publicado apenas em 1821); a partir desse momento, a Diabelli und Comp. intensificou as edições de obras de Schubert, inclusive, numerosos lieder dele foram impressos durante sua vida, publicados em versões para canto e guitarra, realizadas muito provavelmente pelo mesmo Diabelli. Segundo Savijoki[1] a primeira obra de Giuliani publicada por Cappi und Diabelli foi Introduction et Variations sur Le Thème favori, Das ist alles eins, op. 99, o que começa também uma importante relação entre ambos homens. A prática da publicação de arranjos para incrementar as possibilidades de vendas era muito comum na época, e Diabelli possuía uma grande experiência neste trabalho: além dos numerosos arranjos de lieder de Schubert, encontramos, por exemplo, versões para guitarra e piano dos três concertos de Giuliani. Como resultado desta ocupação editorial, o próprio Diabelli continuou escrevendo grande quantidade de música para e com guitarra, voltada principalmente a satisfazer os novos gostos do público vienense da época Biedermeier; por isso encontramos tão frequentemente, gêneros como a serenata, para duos ou trios com guitarra, e o lied, além de um enorme número de arranjos de danças para diversas combinações instrumentais com acompanhamento de guitarra. Como compositor, a produção para guitarra de Diabelli conforma apenas a terceira parte de seu catálogo de obras originais, com 128 obras. Esta é uma importante diferença com respeito a Molitor e Matiegka, cujas produções se centraram principalmente na guitarra, ou Giuliani, que escreveu exclusivamente para este instrumento. Como vimos em capítulos anteriores, Diabelli teve um grande interesse na composição de música religiosa, e também deixou música de câmara e uma abundante obra para piano. Diabelli estudou composição com Michael Haydn (irmão menor de Joseph) que foi um prolífico compositor, sobretudo respeitado no campo da música litúrgica. Resulta, portanto, surpreendente que Diabelli escrevera uma marcha fúnebre à memória de seu professor, falecido em 1806, para guitarra, sendo que em seu catálogo encontramos marchas fúnebres para piano e para piano a quatro mãos. […]

[1] Anton Diabelli´s Guitar Works: A Thematic Catalogue.SAVIJOKI, 2004.


I. Sonata n° 1, em Dó maior

É a sonata mais breve do conjunto, pese a estar estruturada em quatro movimentos:
I- Allegro (Dó maior, 4/4)
II- Andante cantábile (Fá maior, 3/4)
III- Menuett (Dó maior, 3/4)
IV- Rondó: Allegretto (Dó maior, 2/4)

Primeiro movimento: Allegro

Trata-se aqui de uma forma sonata embrionária; são 56 compassos em andamento allegro, dos quais 24 conformam a exposição, pelo que o espaço alcança apenas para apontar as articulações formais. Existe a polarização de tônica e dominante, com uma transição que leva de uma a outra, mas não chega a ser uma modulação. A tonalidade da dominante se estabelecerá através do próprio segundo grupo, reforçada pela coda. O espaço que ocupa o desenvolvimento é extenso comparado com a exposição, o que é incomum para um movimento de tão breves dimensões onde as polarizações formais estão tão levemente desenhadas.

A primeira frase consta de 6 compassos (figura 208). Os dois primeiros, requadrados na figura, conformam um vigoroso gesto de apertura que estabelece a tonalidade: os acordes I-V, uma escala ascendente, e a cadência V7-I. Este gesto não voltará a aparecer ao longo de todo o movimento (se excetuamos a própria repetição da exposição) como assim tampouco o fará o motivo da escala em semicolcheias; de forma que temos uma frase em estilo cantabile[1] composta pelos 4 compassos tradicionais, precedida da chamada introdutória dos compassos 1-2.

Figura 208. Diabelli, Allegro, c. 1-6.

A sonata em Fá maior Opus 10 n° 2 de Beethoven, publicada em Viena em 1798, mostra também esta característica de uma frase em estilo cantabile em tempo allegro, precedida por uma introdução vigorosa baseada apenas nos graus I e V. Note-se que as proporções são idênticas: em Diabelli: 6 compassos de 4/4 estruturados em 2+4; em Beethoven: 12 compassos de 2/4 estruturados em 4+8 (figura 209).

Figura 209. Beethoven, Sonata n° 6 em Fá maior, Opus 10 n° 2, c. 1-12.

[1] Referências ao estilo cantabile são encontradas em Koch, 1802 e Daube, 1797. O termo indica música de caráter lírico, com tempo moderado e uma linha melódica apresentando valores de notas relativamente lentos, principalmente dentro de um âmbito melódico estreito. O termo allegro cantabile é utilizado para designar uma melodia cantável, em tempo rápido (RATNER, 1980).


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As três sonatas do opus 29 mostram a clara preocupação do compositor por trabalhar com diversas possibilidades formais, conduzindo gradualmente o ciclo desde o simples ao complexo, iniciando com o brevíssimo allegro da primeira sonata para concluir com o extenso finale da terceira. A escritura guitarrística é perfeitamente idiomática para o instrumento, que conta nestas obras com exemplos entre os mais finos do gênero, no período.

Riboni considera que Diabelli deixou quatro exemplos de forma sonata para guitarra solo, contando além do opus 29 com o Andante cantabile opus 89 n° 7 da coleção de peças intitulada Amusemens pour les dames (c. 1818). Esta peça realiza uma modulação à dominante, mas não apresenta um verdadeiro segundo tema, senão apenas uma seção conclusiva nesse tom. Segue-se um interessante desenvolvimento e uma recapitulação que resolve a tensão estrutural da modulação à dominante na primeira parte. Em todo caso, se esta se considera como uma forma sonata, não poderia deixar de contar-se um exemplo muito mais significativo que constituiria o quinto exemplo, cu­riosamente não mencionado por Riboni: a Overture opus 26 (c. 1807)[1].


[1] Tratamos sobre esta peça no capítulo 2.