I. Sonata em Dó maior, opus 15
O compositor e guitarrista italiano Mauro Giuliani chegou a Viena –onde se radicaria por mais de uma década– em 1806, e em pouco tempo se assentou como um dos mais importantes virtuosos naquela cidade. Em 1808, apresentou-se como solista com seu próprio concerto para guitarra e orquestra, o opus 30, alcançando rutilante sucesso. Nesse mesmo ano, várias de suas composições apareceram publicadas, entre elas, a sonata opus 15 e os Trois Rondeaux opus 8 para guitarra solo e a Serenade opus 19 para violino, violoncelo e guitarra. Vários elementos nos permitem deduzir que Giuliani planejou cuidadosamente suas atividades para poder conquistar em pouco tempo invejáveis posições nos círculos musicais da alta sociedade. Se por um lado, possuía o dom do virtuosismo em alto grau, capaz de por si, de abrir as portas para a circulação de seu nome, sua habilidade como compositor era mais uma poderosa arma para garanti-lhe um espaço privilegiado em Viena. As dedicatórias de várias obras de sua época inicial na cidade demonstram seu contato com nomes influentes e poderosos da aristocracia vienense. Sua presença como virtuoso indiscutível foi fortemente marcada pela sua interpretação do concerto opus 30, que resultou uma grande novidade. Contando-se entre os primeiros concertos para guitarra e orquestra da história, se por um lado não impediu que houvesse críticas pela estranheza que causava ver e ouvir uma guitarra solando junto a uma orquestra, por outro, não houve hesitação nenhuma para reconhecer que Giuliani era um dos maiores guitarristas da época. O concerto está escrito em um estilo claramente italiano, próprio para exibir virtuosismo ao mesmo tempo em que faz gala de uma lírica veia melódica. Inteligentemente, Giuliani publicou no mesmo ano algumas peças capazes de demonstrar ao público que o fato de ser estrangeiro não lhe impedia poder compreender e assimilar o estilo vienense. Entre elas se contam algumas das mencionadas acima, como os Trois Rondeaux opus 8[1] e a Serenade em Lá maior, opus 19. Esta última é uma obra para trio, única na produção de Giuliani, onde consegue um fino equilíbrio instrumental entre o violino, o violoncelo e a guitarra. No primeiro movimento, Adagio, o violoncelo inicia com um tema lírico e expressivo, sobre a textura de acompanhamento dos arpejos da guitarra e do violino em pizzicato (figura 280):

O início do segundo movimento, um Scherzo em Si menor, possui um tema a cargo do violino, onde os primeiros quatro compassos, tocados sem acompanhamento, introduzem um penetrante motivo rítmico sobre uma nota só (figura 281).
[1] Mais adiante se verão algumas semelhanças motívicas entre o primeiro dos rondós e a Sonata opus 15.
Sonata em Dó maior, Opus 15 (1808)
I- Allegro spirito (Dó maior, 4/4) II- Adagio con grand espressione (Sol maior, 2/4) III- Finale: Allegro vivace (Dó maior, 3/8) Grazioso (Dó maior, 2/4) – Allegro vivace |
Este é o único exemplo de sonata em vários movimentos, para guitarra solo, que deixou Giuliani. As Trois Sonates Brillantes faciles et agréables Opus 96, datam do ano 1818, e são obras em dois movimentos onde apesar do nome a forma sonata não é empregada. Também é este o caso das Tre Sonatine Opus 71 de 1816, embora, curiosamente, aqui é utilizado o diminutivo sonatina para obras em três e quatro movimentos, que resultam mais extensas e complexas que as sonatas Opus 96. A Gran Sonata Eroica Opus 150, que consta apenas de um movimento, foi publicada em 1840, onze anos depois da morte de Giuliani; foi mencionada no capítulo anterior por se tratar de uma obra escrita na Itália, depois da sua partida definitiva de Viena em 1819. Se por uma parte o opus 96 emprega a palavra sonata em seu título sem possuir movimentos nessa forma, por outro lado, a Grande Ouverture Opus 61 representa um fino exemplo de forma sonata, com a retórica própria das aberturas de ópera de Rossini, e como tal, consta de apenas um movimento.
De todas as sonatas para guitarra escritas em Viena, o opus 15 de Giuliani é o único que se manteve no repertório de concerto e nos programas de ensino dos conservatórios e universidades de todo o mundo. Contudo, e a pesar de sua lograda feitura, esta sonata tem sofrido algumas modificações (absolutamente desnecessárias) na sua estrutura, por diversos editores, como se verá mais adiante.
O interesse nas últimas décadas pelo retorno às fontes originais teve como consequência a pesquisa por edições de época das obras dos compositores, com ênfase nas primeiras edições, que hoje é possível encontrar em fac-símile. O fato de existirem várias edições de uma obra implica, em certa medida, um interesse do público por esta, embora sejam possíveis também outros fatores, como por exemplo, uma nova edição pela mesma firma editorial realizada por causa da mudança de proprietários, que modificarão a forma em que seus nomes ou o da companhia aparecem, o que se pode comprovar nos frontispícios das obras. No caso da sonata opus 15 de Giuliani, a primeira edição foi publicada em julho de 1808 por Vienna: Imprimerie Chimique, no sistema litográfico, com uma impressão de pouca qualidade. Quando S.A. Steiner & Co. assumiu a empresa, começou colocar seu próprio nome nas publicações a partir de 1815. Steiner realizou uma nova edição da sonata, com algumas modificações, não só na partitura, mas também no frontispício da obra. Segundo Ophee:[1]
Parece-me que a necessidade por um novo título na página, paralelo ao fato de que Steiner necessitou colocar seu nome ali desde que passou a ser o único proprietário [da firma editorial], deveu-se não tanto à correção do nome da dedicatária, segundo indicado por Heck, como à necessidade de colocá-lo [ao título] em alemão. A primeira edição foi impressa em 1808, quando os franceses ocuparam Viena. A segunda edição, por conseguinte, pode ter sido impressa algum tempo mais tarde, quiçá depois de que os franceses deixaram Viena.
Isto é interessante, porque na primeira edição a obra se intitulava apenas Sonate, em quanto que na segunda[2], o adjetivo brilliant foi adicionado (figura 283). Em 1815 Giuliani ainda estava em Viena, pelo que cabe a possibilidade de que o agregado do subtítulo haja sido realizado com sua anuência. Isto a colocaria na distinção das sonatas compostas para uso profissional antes do que amador, o qual ecoa junto a outras sonatas para guitarra da época que rezam títulos como Grosse Sonate (Molitor, opus 7) ou Grande Sonate (Matiegka, duas sonatas sem número de opus).

[1] On the textual authority of old editions. OPHEE, 1988.
[2] É esta segunda edição de 1815 que será utilizada aqui para ilustrar os exemplos, porque é o fac-símile de mais fácil acesso através da internet. Estruturalmente é igual à primeira edição, embora haja várias modificações nas indicações de dinâmica e anotação de ornamentos, etc. Algumas destas diferenças serão notadas oportunamente.
Primeiro movimento: Allegro con spirito
A maneira em que começa esta sonata é absolutamente incomum para a época em que foi composta, onde o habitual é que o tema principal seja anunciado imediatamente. Aqui, pelo contrário, a textura de acompanhamento é apresentada antes que o tema seja enunciado (figura 284).

Não encontramos este recurso em nenhuma sonata para piano da época, entre as de Haydn, Mozart, Hummel e Beethoven[1]. Que isto haja sido utilizado em uma sonata para guitarra, sem ter precedentes noutras sonatas para instrumento solo é um fato de por si significativo, que tende a individualizar a composição, e que infelizmente, mais de dois séculos depois da sua criação tem passado absolutamente despercebido.
Devemos notar, no entanto, que
Giuliani pode haver experimentado em obras prévias algumas das ideias que
utilizaria na sonata. O Caprice opus
11 em particular mostra mais semelhanças das que se poderiam acreditar como meras
coincidências. Segundo a tabela mostrando as obras e números de opus, este
trabalho foi publicado quase dois anos depois que a sonata opus 15, mas não é
impossível que tenha sido composta antes, como um estudo aproximativo para as
possibilidades da forma sonata. Veja-se o início do Caprice, também em Dó maior,onde
o tema vai surgindo aos poucos desde uma textura de acompanhamento que lembra
claramente àquela da sonata (figura 285).

Esta obra utiliza vários dos princípios da forma de sonata, porém tratada com bastante liberdade, como permite o gênero Capriccio, de maneira que aparenta ter sido uma experimentação dos limites formais para conseguir mais tarde uma obra tão belamente equilibrada como a Sonata opus 15. No Caprice, Giuliani expõe dois temas, em tônica e dominante respectivamente e parte logo para uma seção de livre desenvolvimento, bastante extensa, onde chega a uma tonalidade tão afastada como Fá# menor ao mesmo tempo em que introduze tresquiálteras pela primeira vez na peça. Como veremos, este e vários outros rasgos foram aproveitados, com as necessárias adaptações, na sonata.
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Continuando com a exposição do opus 15, na figura 284 se observa como a primeira semifrase modula prematuramente à dominante, depois do qual, o processo começa de novo, como se a primeira tentativa tivesse sido errônea, e agora tivesse de ser ‘corrigida’. Esta vez há uma cadência perfeita na tônica, reestabelecendo a tonalidade de Dó maior (figura 286). […]
[1] Seria possível excetuar apenas a sonata para piano n° 14 em Dó sustenido menor, Opus 27 n° 2 de Beethoven (completada em 1801) mas resulta significativo que possua o subtítulo: “quase uma fantasia”, o que denota aqui um afastamento proposital das ‘convenções’ da sonata. No gênero sinfônico, a sinfonia n° 40 K. 550 em Sol menor de Mozart também deixa ouvir muito brevemente a textura de acompanhamento antes de o tema inicial ser apresentado, o que também resulta uma característica absolutamente incomum na época; também escutamos um compasso introdutório em seu último concerto para piano (n° 27 em Si bemol maior, K. 595) antes da entrada do tema.